24 de jul. de 2009

Movimentos do coração da Priscila:

9 de jul. de 2009



A NEVE NA NÉVOA

Capítulo 1

... lembro-me do arrozal rajado de tigres em que adormecia a olhar o céu. Minha única tarefa, nesse mosteiro com neve pelo telhado, é varrer os cacos do buda para debaixo da chuva. Daqui pode-se ouvir, mais abaixo, a missa das melancias. Mais para o poente escutamos o silêncio do poço do mosteiro. Se mirar dessa janela observamos, ainda, a ciranda das andorinhas, pois agora é quase amanhã. E há um louco que atira pedras na vidraça. Um sacerdote vem nos contar, todos os dias de finados, que sonhou que rolava uma imensa cabeça ladeira acima e que, lá no topo, a cabeça voltava a descer e ele, o sacerdote, recomeçava o eterno castigo. E assim, nessas enevoadas tardes observo, dos livros da biblioteca, o imóvel. A madre superior, sempre que percebe que a cárie fede em sua boca, ordena o castigo abrupto: bebam desse mar gelado o sal que ele, o mar gelado, é, nada mais, nada menos, que a vossa própria sede. Depois ordena que descansamos as mãos na ária da lira. O sacerdote, que sonha eternamente que rola eternamente uma cabeça morro acima, pede que tocamos, no rádio, dentro da névoa, quartetos de Béla Bartók. O que reclamamos muito, pois sabemos, a pele da música, em sua essência, não me lembro se foi Schopenhauer quem falou, é intocável, e quartetos na névoa é um mistério insuportável. Eu gosto muito é de ler, dos livros proibidos, histórias de mulheres que, à beira do Saara, bebiam, da moringa, a água. Depois, sob severos açoites da madre por ler livros proibidos, adormeço e sonho que beijo a neve dos cabelos daqueles velhos da Boca Maldita. De um deles carrego a dentadura cravada no flanco, pois ele me chupou a coxa, o brinco, a barata do esgoto. E assim são os dias no mosteiro de Dramásio, num filme não iniciado de Federico Fellini, com pomar de pêssegos e rosários de farpas, amém.
LÍDIA

Procurávamos, um tanto insanos, os haréns esquecidos de Al Kaban, o terrível, e encontramos templos repletos de caveiras amontoadas, dentes de ouro, arabescos de torturas, uma harpa, duzentos olhos de vidros, fósforos Cavalo, um cartaz de wings of desire, de Win Wenders, e nos deparamos com o seguinte anunciado – este estava grafado a sangue de ninfa: e há quem reze a um deus para depois esquecer-se dele.

Súbito a névoa me tomou o coração que já era, por sua natureza selvagem, decepado em rosário de farpas. É claro que para muitos do grupo essa “névoa” não passou de um assombro instantâneo, esquecido logo no momento em que um deles se atirou voraz a arrancar os dentes de ouro das dentaduras, mas não, eu não poderia mover o meu espanto para outra cena qualquer, o que meu espírito queria, e pasmem lá, nem é tão livre assim, feito lesse ele, meu espírito, o livro de mortalhas de algum tirano de 1600, século em que mulheres nasciam para o sacrifício do evangelho, pasmem lá, era recordar dela, da Lídia, a de olhos de Ulisses, a arquitetura daqueles longos cabelos, a maneira de verter, no jarro, o silêncio.

O que desejei, ao olhar o arabesco que ardia em minhas retinas, eram constelações de violoncelos que, na neblina, executavam quartetos de Béla Bartók. Eu, Lídio, que tenho em meu pesadelo freiras caducas que bebem, da moringa, a água.

Ó Lídia, tuas mãos no essenfelder, minha alma no abandono daquelas manhãs, e um louco que difere cabeçadas no casco da barcaça.

Há quem ama uma mulher para depois esquecer-se dela. Eu, que todas as tardes recolho o barco, limpo o peixe, abano as moscas do pescado, depois bebo cachaça onde o mar esquece de molhar, não faço nada mais que recordar, da Lídia, o movimento do quadril. Aquela, maluca!, que tem os olhos feito que colhidos da amendoeira.

Seus acordes eu sentia na cervical – quase indolor.

e há quem reze a um deus para depois esquecer-se dele. Eu lembro de Lídia para depois esquecer dela. Esquecer do dia em que ela sentiu a fina faca na nudez da nuca, o dia em que mirou, pela vez última, parágrafos de Guimarães Rosa. Era tão bela a Lídia, sua voz, um rádio cansado, seus olhinhos apodrecendo.

Eu existo aqui, nessa ilha de sonâmbulos marinheiros, mas meu coração neva em outro lugar.

O que alguém precisa entender, que não precisa ser você, leitor machadiano, é que matei Lídia para depois me esquecer dela, ou até o dia em que eu, Lídio de meu nome, voltar a ser o pó que sou, em um tempo qualquer, em algum lugar qualquer, esquecido para sempre, pois haverá quem se lembre de mim para depois me esquecer.

E o que tem Al Kaban com isso? Nada. Apenas reza a lenda, e já sabemos, há quem reza..., que ele, o imperador, amou o pó para, depois, esquecer o pó que era, e que ao pó voltaria.