Feliz
Ele me diz:
Antes da primeira vela se acender, a vela já estava acesa.
Antes do primeiro assassínio, o mal já habitava em Macbeth, o terrível.
Antes de Deus, havia Deus que pensava o Deus.
Eu afogo gatos na pia batismal. Planto xícaras de sal nos corações dos santos.
Prefiro atirar a louça no muro a lavá-la.
Ele difere cabeçadas no ladrilho. Pensa que Deus, assim como a vida, não passa de uma cena de Kurosawa onde, no fim, apenas a fumaça no ego da paisagem.
Intui que só o poderia salvar o piano de Chopin afinado contra a neblina da tarde. Vai até o rádio e percebe que não funciona. Eu, que não gosto de faxina, prefiro quebrar as coisas a limpá-las com o ardor de mulher casada.
Estou entontecida de tudo que me dizem por aí. Uns dizem que afogar gatos na pia baptismal é cinema, outros me batem com o gato morto na cara. Outros têm ares de tumba. Alguns escolhem ostras no cais.
O padre me excomunga, embora goste de chupar minha coxa, meu brinco. Depois me bate com lavadas de água benta.
Para ele é terrível o silêncio dos livros, por isso lê incansavelmente. Mas tem engordado consideravelmente e já não se importa com as marcas que o padre me deixa na coxa.
A ele só importa, agora, este último copo, este que ele usa para guardar, todas as noites, sua dentadura feliz.
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