17 de jun. de 2009





ROSÁRIO

Antes que floresça em mim a névoa, confidencio, nestas linhas que traço atrás desse retrato antigo de minha mãe, o meu abismo.

Cedo aprendi a ler a neve.

Meu pai, que era açougueiro, quando não conseguia disfarçar a carniça que fedia na boca, me batia com o bife na cara. – Quando me penetrava entre as nádegas o casco de pinga eu pensava que ele tendia a esgoto.

Cedo me ensinou a abanar as moscas do açougue.

Um dia, no túmulo de sua alma, o nojo disse que a morte, esse fracasso, seria um dia o seu cárcere. Um dia antes de deixar para minha mãe 3 semanas de luto, me confidenciou o seguinte epitáfio: o escuro da tumba onde me enterraram pratico toda uma inexistência.

Com a morte de meu pai as moscas, enfim, tomaram o açougue.

Meu sonho, em particular, sempre foi desempenhar ao essenfelder a Balada n°1 de Chopin. Mas o que me restou, depois que minha mãe se casou com o leiteiro, foi desfiar esse rosário de farpas que, pasmem, passa pela família desde o século das torturas.

Agora, anos depois da morte de minha mãe, me restam na frágil memória as histórias que me contava sobre esse rosário e sobre generais antigos que decretaram a queima dos livros.

O fato é: esse rosário, que tem a forma de um coração decepado, que aprendi a desfolhar diariamente, num rito quase doentio de um tempo pueril, pois era, não como desejo, mas sim ordem, ordem de minha amada mãezinha, me escravizou as mãos, ou melhor, corroeu uma e me decapitou a outra.

Nunca, mesmo em sonho, toquei alguma tecla sequer ao piano.

No final dessas confissões me resta dizer que pressinto meu fim. Sinto que me cresce o musgo sob a língua e a neve, que cedo aprendi a ler, tem me segredado, com cochichos no ouvido, que a morte nada mais é que esse fracasso de esquecer e silenciar para sempre aquele grito que nunca tivemos a ousadia de soltar, aquele livro que sempre tivemos preguiça de escrever, aquela mulher que sempre queríamos escutar por horas o silêncio.

E este rosário de farpas pontiagudas? Resta agora ao meu filho dar continuidade à tradição secular. Resta a ele a memória de seu pai, do pai de seu pai e assim por diante. Se, em algum momento, tiver o mesmo sonho de acariciar o essenfelder ou de lamentar as noites na viola-de-gamba ou tocar com a pele suave das mãos o seio da mulher amada, desista, seu destino não foi lançado feito as garrafas que os enamorados jogam no oceano, seu destino já foi traçado antes mesmo de meu nascimento, e só a ele cabe esta dolorosa porém nobre incumbência, a de decifrar esse rosário que receberá dentro dessa caixinha-de-música.

– Meu filho, que seus dias sejam longos e brancos.

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